Silêncios e Rios - Uma reflexão sobre os exercícios práticos propostos através de narrativas sonoras iniciais para o rito-espetáculo-solo Labirinto, Rios de dentro

 


Autora - Daniele Cristina Oliveira, Danielle Rosa


“Fecho os olhos, me deito no chão e me concentro no profundo silêncio que não há. Ouço embaixo do asfalto rios sufocados correrem vivos.”

                                 São Paulo, 30 de Junho de 2024.

 

Pistas para percorrer o mapa:

Busque na primeira leitura encontrar suas próprias pistas no texto.

Se coloque em estado de percepção, aberto à poesia.

Ouça o silêncio que há em ti, na natureza, no corpo, no chão.

Se observe.

Anote sempre suas impressões.

 

Peço licença e benção à todas que vieram antes de mim. Elas abriram caminhos pra que eu aqui chegasse.

Sempre ouvi dos meus mais velhos histórias sobre o princípio do mundo, de que antes desse mundo ser mundo existia o caos e que antes do caos, existia o silêncio. Sinto que sempre quando algo está para nascer se toca no absoluto do silêncio e no sim e então nasce a vida, ser, som, palavra, canção, oração.

Só quando se toca no absoluto do silêncio é possível tocar na força que emana do som e da palavra, pois o potencial das intencionalidades ecoa no silêncio. (Vargens, 2013, pg 10)

A descrição sobre o silêncio proposta por Meran Vargens, conversa com o que sobre o silêncio penso, pois percebo que é no contato com o silêncio que surgem as notas, as palavras, as obras, a presença, a vida. É um paradoxo não haver silêncio e perceber as coisas brotando de um profundo silêncio. José Batista Dal Farra em seu texto Percursos Poéticos da Voz coloca:


É do silêncio que emerge o som. O ar que entra silenciosamente pela inspiração é potência da voz: o vazio está cheio de ar, o ar está cheio de voz. Há som no silêncio. Da condição de existência de uma escuta humana viva decorre que, mesmo com todo o ruído de fundo anulado, por meio de um isolamento absoluto do exterior, restará ao ouvinte o som de seu pulso grave e ritmado, da pulsação de seu sangue, do rumor de seus órgãos em movimento, sobre o pano de fundo branco do sistema nervoso. Conclui-se que as poéticas da voz contêm poéticas do silêncio. (Dal Farra. Pg 04) 

Busco dar voz ao silêncio para que a partir dele brote sons que observei no interior em meu corpo e no exterior: no lugar onde estou, neste momento sentada sobre o asfalto escuto os rios que correm quatro metros abaixo do solo. Faço uma seleção do que me chama mais atenção e se conecta com o meu aqui agora e inicio uma breve pesquisa prática. Partindo dos meus ruídos, sons internos escuto a música presente nos sons do meu corpo, a música presente nos sons dos rios. Faço o rastreio pensando nesses espaços, nessas pausas, nessas fermatas, nestas frestas e brechas. Enquanto escrevo, muitas pausas acontecem e vão trazendo aqui as palavras que dão corpo ao texto.

O rastreio é um gesto de varredura do campo. Pode-se dizer que a atenção que rastreia visa uma espécie de meta ou alvo móvel. Nesse sentido praticar a cartografia envolve uma habilidade para lidar com metas em variação contínua. (KASTRUP, 2009, p.40)

Em estado cartográfico a partir e para minha pesquisa, peço licença aqui para escrever de forma livre, com a poeticidade que uma escrita conectada com uma voz articulada pelo coração[1] possa ser, pois traz minha verdade pessoal, cênica, artística e acadêmica, de outro modo não sei como seria. Este é também parte de meu projeto poético.

Começo esta escrita reflexiva com muitas perguntas e logo vou buscando em minhas próprias experiências onde e como tudo começou, ou onde tudo começa, mas como disse Lispector,

como começar pelo inicio se as coisas acontecem antes de acontecer? Pensar é um ato. Sentir é um fato. E os dois juntos, sou eu que escrevo o que estou escrevendo. (Lispector. 2007, pg 7)

Percorro mapas pessoais e artísticos, revejo imagens, desenhos, leio poemas-textos, assisto cenas gravadas, recordo outras, ouço canções, assisto ao documentário Entre Rios, me conecto, me emociono. Por que a relação do homem com o meio ambiente não é saudável? Sempre houve o desejo desenfreado de progresso e para isso há a escolha de negação da vida, da saúde, do meio ambiente, do ecossistema, das plantas que curam, os rios limpos que correm fluidos e que contribuem para a vida saudável. Entro em estado de criação artística, me concentro nos percursos dos rios que me atravessaram e me atravessam. Desenho trajetos meus e dos rios. Tudo em silêncio. Mas, não há silêncio, pois ao deitar no chão onde estou consigo ouvir não somente os ruídos da cidade, mas escuto os sons de águas que correm sob o asfalto. Observo.

Durante exercícios de criação de narrativas sonoras, tive contato com textos, propostas cênicas, pesquisas entre outros dispositivos que instigaram ainda mais o cruzamento de minha cartografia afetiva e a relação com os rios que me atravessam. 

Sobre cartografia afetiva,

Nessa dimensão, criar uma cartografia afetiva seria construir uma história atribuindo realidades/ficções nessas criações. Assim, tornamo-nos autores e perceptores que trocam sonhos, ilusões, realidades, ficções, mas, principalmente, que buscam uma relação mediante cartografias impulsionadas pelo afeto, ora seu, ora do outro. (Pereira, pg 10) 

Minha pesquisa de Mestrado em Artes pela Unesp, foi uma cartografia afetiva, um estudo teórico-prático com intuito de mapear poéticas vocais para a cena, em que parti da poesia na voz falada para a voz cantada, investigando através de criações artísticas e partindo das minhas experiências, a voz da Atriz-Poeta-Cantora. Para esta investigação me propus um trabalho com metódo cartográfico, sendo minha prática sujeito e objeto, para através de meus mapas artísticos e da poesia não escrita ou falada somente, mas principalmente cantada, encontrar caminhos para a formação da Atriz-Poeta-Cantora. Os mapas que nortearam essas descobertas de estudo, fizeram parte dos processos artísticos nos quais mergulho através da minha experiência e prática no Teat(r)o Oficina, Grupo Poesia Cantada e experimentos realizados no curso de Pós Graduação em Canção Popular na Faculdade Santa Marcelina que gerou o trabalho Poema, Voz e Canção – Poéticas Vocais no experimento da Canção Saudade.

A partir desse estudo me concentrei para criar os primeiros rascunhos de uma dramaturgia que resultou em meu rito-espetáculo-solo Labirinto, Rios de dentro. E eis uma pergunta: Qual a relação dos rios com minha pesquisa? Bem, nesse profundo mergulho nos eixos de minha pesquisa[2], pude perceber que a minha relação com os rios é ancestral e reflete toda uma trajetória dentro de meus processos artísticos. Devido isso, invoco aqui os rios que correm em mim: Rio Gavião, Rio verruga, Rio Pardo, Rio Marçal, Rio Catolé, Rio Saliná, Rio de Contas, Rio Vermelho, Rio Osun, Rio Tietê, Rio Pinheiros, Rio Tamanduateí, Rios de Milho Verde, Rio Saracura, Rio Itororó, Rio Amazonas, Rio do Vaza Barris, Rio São Francisco, Rio Bixiga. Estes rios me atravessaram em momentos distintos desde a infância, até o atual momento, especialmente no rito-espetáculo Mutação de Apoteose que enceno no Teat(r)o Oficina desde 2022 e que me fizeram cartografar os cruzamentos destes rios nas cenas e em minha escrita.

A partir da observação silenciosa dos sons das águas do Rio Bixiga que correm a quatro metros abaixo do solo do futuro Parque do Rio Bixiga, entro em estado de percepção extremamente concentrada. Inspiro, expiro. Respiro. Arfo. Escuto. Repito. Deixo soar a respiração. Deixo os sons dos rios reverberarem em meu corpo. Conecto-me com as cenas do rito-espetáculo Mutação de Apoteose[3] da invocação de uma Oxum Amazona que chama o Rio Amazonas, com minha Oxum trazendo o Rio Bixiga novamente ao seu curso, com a evocação do Rio do Vaza Barris em giras infinitas, até chegar no São Francisco em minha Bahia para retornar a Oxum anciã do começo do mundo. Deixo soar os sons, as vogais, as onomatopéias que nascem com e a partir da respiração e da relação com a escuta. São As, Es, Is, Us, Ós[4] conectados com partes de meu corpo, com os sons das águas que escuto, com os rios de dentro, as águas fluídas que correm em mim em sangue, saliva, suor, gozo, urina, menstruação, lágrima, liquídos que trazem em si memórias, desejos e cores de Ss expiralados e vogais arredondadas e coloridas.

... um dos segredos da língua, que colore as palavras,  com as tintas das vogais, para que os sentimentos e as emoções não sejam incolores como as frias ideias, mas vibrem numa orquestração que eleva a alma, em busca da essencia da linguagem. (Monteiro, 1985, p 64)

As vogais inspiram cores, sensações, mas é muito relativo e varia de acordo com o seu estado, a sua experiência, suas escolhas. José Lemos Monteiro em As Vogais e as cores, conclui que o “fenômeno da audição colorida existe para inúmeras pessoas”, mas que o assunto continua aberto a experiências e contestações, pois as “vogais não possuem identicas funções em todos os contextos”. (Monteiro, 1985). Em 2011 ouvi e cantei a música das vogais no rito-espetáculo Bacantes no Teat(r)o Oficina e percebi a conexão da canção com as cores e partes do corpo que eram propostas, movimentos expiralados que permitiam o canto soar conectado com os sons que nasciam do corpo, das águas do corpo, no caracol rebolado da kundalini[5] e na alegria orgyástica do rito. Em estudos e práticas de Yoga, Kundalini, descobri a relação dos chakras e a partir da descoberta da existência dos anéis de tensão proposto por Reich e trazidos para o Brasil por Jura Otero, senti que tudo está conectado num ciclo infinito de possibilidades para a voz da atriz-poeta-cantora.

AAAAAÉÉÉÉI I I IUUÓÓÓÓÓ[6]

(Quais os sons que mais se conectam com você neste momento? Se permita. Deixe soar. Entoe. Cante. Exercite.)

Deixo soar meu canto a partir dos sons de meu próprio corpo-voz e sons que me tocam externamente. Há uma canção íntima, um ritmo próprio, uma presença que partiu do silêncio, não silêncio, dos rios de dentro, dos rios que correm sob o asfalto. Esta observação íntima permite uma conexão com as sonoridades internas em relação com as externas, fazendo nascer melodias e cantos pessoais.

(Experimente cantar o que você observou agora de forma livre)

É seu próprio canto. O canto de seu corpo vivo conectado com sua memória e saber ancestral[7] e seu saber está em cada canto que nasce.

Esta sonoridade que nasce do seu corpo-voz a partir do silêncio e dessa observação faz parte da sua poética e expressão corporal-vocal, é também a partir dela que você poderá seguir seu mapa-labirinto, buscando encontrar e criar seus próprios ritmos e quando quiser exercitar entoar os cantos que por ventura possam nascer, páre, se permita e só depois retorne. Não tenha pressa, faça disso um rito para um laboratório de experimentação.

(Retorne ao começo e agora faça desenhos, mapeando os rios que te atravessam em sua jornada e escreva pra si palavras que surgiram durante esse processo, fale as vogais, costure as palavras e crie seu texto. Grave e escute.)

A partir desses exercícios algumas questões foram levantadas.

Como ouvimos os sons?

Como nossa maneira de ouvir interfere na percepção dos sons?

A nossa maneira de ouvir interfere na leitura e percepção dos sons?

Quais são as onomatopéias que surgem a partir dos sons da natureza?

 

Abaixo, segue meu exercício de criação de narrativas sonoras em texto, áudio e vídeo.

Exercício 1 -

 

A a o e io iiiei é eoeaio aa eo iuoiae

Eio e eo

Eoia aoao io

Io o aao

Aio

Ao

Uia oe eo

Uaa ua aaeo

Iaa eê o oo

Eio oeao

Aeu aão

A oaia aia e ea

Eeão oo oo aio

O o o

Eio e eo

Io e oeo

Ea e oeo uoao io

A ea eu aaa e oa ea o ouo aeeao

Oee ooae aeia eoeao

Ao ia

Eie io eoio o o aao ao aa

Ao eiao ie

Aua aia uo

Ieio oeae

O aio ia aua o ão ão ea aio

Ieio

Iao e ieio

 

Exercício 2 –

 

Andar sobre rios invisíveis, pés escorregadios, andar lento

Sinuosidade. Cheiro de ferro. Ferrovias afogando rios sob o asfalto. Carros.

Vazio. Caos. Multiplas cores. Ferro. Guarda-Chuva. Plantação. Horta. Floresta.

Guarda-chuva amarelo. Crianças. Bebês no colo. Velhinhos conversando.

ADEUS PATRÃO

Olhos famintos. Gargalhada.

Dor. Dor. Dor. Dar. Dar. Dar.

Trilho. Trem. Concreto.

Pedras, concreto, viadutos, carros

Sufocando rios.

Olhares.

Na festa eu dançava de forma lenta e os outros estavam acelerados.

Sorvete de chocolate. Parque. Rio. Ladeira. Brincadeira. Escorregador.

Vamos brincar?

Existem rios correndo sob o asfalto.

Vamos cavar?

Vamos deixá-los viver!

Rios de dentro.

Labirinto.

Água. Lágrima. Suor. Saliva. Sangue. Gozo. Urina. Mestruação. Esperma. Líquiens.

Silêncios ofegantes.

No vazio tinha água sobre o chão.

Não era vazio.

Silêncio. Hiatos de silêncio.

Era Rio.

 

Exercício 3 – Narrativas Sonoras a partir da escuta dos sons das águas que correm

Link do áudio – https://on.soundcloud.com/Cz27y

Exercício 4 – Silêncios, Ressonâncias e Rios

Link do vídeo – https://youtu.be/d7sJWsL5sbE

 

PARCEIROS DE VIAGEM

 

CORREA. José Celso Martinez. Bacantes. São Paulo: Teat(r)o Oficina, versão 2016.

FUNARI, P. P. A. (2001). As Bacantes de Eurípides. Letras Clássicas, (5), 307-309.

LISPECTOR, Clarice. hora da estrela. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.

MARTINS, J. B. dal F. (2007). Percursos poéticos da voz. Sala Preta7, 9-17.

MONTEIRO, J. L. As vogais e as coresRevista de Letras, v. 8, n. 1, 28 jun. 2017.

 

KAMBEBA, Márcia. O lugar do saber ancestral. Série Saberes Tradicionais, v. 1; São Leopoldo: Casa Leiria, 2020.

 

PEREIRA, Juliana Cristina. Cartografias Afetivas – Proposições do professor-artista-cartógrafo etc. Santa Catarina: 2014. 25 pág. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/raega/article/view/36087 Acesso em: 02, Maio 2023.

 

PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020

VARGENS, Meran. A voz articulada pelo coração: ou a expressão vocal para o alcance da verdade cênica. São Paulo: Perspectiva; Salvador, Ba: PPGAC/UFBA, 2013.

 



[1] Do livro “A voz articulada pelo coração” da professora e pesquidadora Meran Vargens.

[2] Identificação e Memória, Experiência e Ritual.

[3] Rito-Espetáculo, Teat(r)o Oficina, 2022/2023. Direção – Camila Mota. Rito-Espetáculo que estava em cartaz na ethernidade de Zé Celso.

[4] Do poema “Vogais” de Rimbaud.

[5] Trecho de canção do rito-espetáculo Taniko, Teat(r)o Oficina, 2010.

[6] Cores propostas a partir do poema Vogais de Rimbaud que é referência para o Teat(r)o Oficina.

[7] A partir das leituras do livro O lugar do Saber Ancestral de Márcia Wayna Kambeba, lembrei da tradição oral, dos ensinamentos das aldeias, tribos, comunidades, terreiros.

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